O filósofo francês diz
que a internet vai nos permitir construir uma inteligência
coletiva
Foto Daniel Aratangy |
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Aos
47 anos, o filósofo francês Pierre Lévy é um dos
principais defensores do uso do computador e, em
particular, da internet na ampliação do conhecimento
humano (e em sua democratização). É o autor de conceitos
como "tecnodemocracia" e "cosmopédia" e um dos criadores
do programa Árvores do Conhecimento, que organiza grupos
de usuários da internet segundo interesses culturais. A
maioria de seus livros - como A Inteligência Coletiva e
Cibercultura - já foi traduzida no
Brasil | |
surgimento dos computadores e, mais tarde, de uma rede para
interligar as pessoas em todo o mundo, foi uma conquista tão
importante para a humanidade como o controle sobre o fogo, acredita
o filósofo francês Pierre Lévy. Segundo ele, estamos entrando na
época da noosfera (o prefixo noo quer dizer "relativo ao espírito"),
na qual aparece pela primeira vez a possibilidade de construir uma
inteligência coletiva. No livro Cibercultura, ele lança a pergunta e
dá a resposta: "Como manter as práticas pedagógicas atualizadas com
esses novos processos de transação de conhecimento? Saindo de uma
educação e de uma formação institucionalizadas (a escola, a
universidade) para uma situação de troca generalizada de saberes".
Para chegar a essa cultura planetária, a escola precisa assumir um
papel fundamental: criar modelos de aprendizagem em que o professor
seja um "animador da inteligência coletiva" do grupo de alunos e não
mais um fornecedor de conhecimentos. Professor da cadeira de
Pesquisas sobre Inteligência Coletiva da Universidade de Ottawa
(Canadá), Lévy afirma que todos temos a obrigação de enriquecer
nossa coleção de competências ao longo da vida. Ou seja, a divisão
clássica entre um tempo de estudo e outro de trabalho já era. Em
maio ele esteve em São Paulo e concedeu a seguinte
entrevista.
O
senhor criou a expressão "inteligência coletiva". O que é
isso?
É a
capacidade de trocar idéias, compartilhar informações e interesses
comuns, criando comunidades e estimulando conexões. Para começar,
tome o cérebro humano. Fazemos infinitas conexões que se
intensificam à medida que envelhecemos. Agora imagine que podemos,
graças ao computador, integrar essa "constelação de neurônios" com a
de milhões de outras pessoas. Essa é a comparação que faço. A
internet nos permite hoje criar uma superinteligência coletiva, dar
início a uma grande revolução humana.
O
que essa idéia de inteligência coletiva tem a ver com a
educação?
Eu vejo
uma mudança qualitativa nos processos de aprendizagem, rumo a uma
aprendizagem cooperativa. Aliás, essa é a melhor tradução de
inteligência coletiva para o campo educativo. Num cenário como esse,
o professor torna-se um animador da inteligência coletiva da turma.
Estamos iniciando uma época em que iniciativa, liderança, ânimo e
empenho serão características cada vez mais valorizadas. Se você é
um empregado que tem como objetivo pessoal produzir o menos
possível, não está fazendo nada de bom — nem para o próprio
desenvolvimento particular nem para a sociedade. O que a sociedade
precisa é que todos tentem se desenvolver até o máximo de suas
potências criativas, seja criando negócios e teorias ou então
inventando ferramentas e produtos, de acordo com as habilidades de
cada um.
O
local ideal para formar esse ambiente estimulante e criativo é a
universidade?
Acredito que o primeiro agrupamento humano que tomou
consciência de estar criando uma inteligência coletiva foi a
universidade, com as comunidades de cientistas e especialistas de
vários países que estudam simultaneamente um mesmo tema. Isso se
tornou possível porque a produção de conhecimento e os avanços
científicos estão fortemente embasados na colaboração. Hoje penso
que a universidade continua tendo um papel importante na construção
da inteligência coletiva, mas jamais um papel exclusivo. Isso é
tarefa de toda a sociedade.
Como
a escola pode participar dessa construção da inteligência
coletiva?
Praticando-a, dando exemplos. Eu penso que os professores da
Educação Básica devem estimular o que chamo de "competição
cooperativa" entre os alunos, ensinando-os a fazer parte de um time
e a usar os computadores ligados à rede mundial.
O
que é, exatamente, essa "competição cooperativa"?
Existe,
naturalmente, uma grande disputa entre os estudantes. Quem tem as
melhores notas, quem é o segundo, quem é o último. A competição faz
parte da escola, mas por si só ela é negativa. Penso que é papel de
todos os educadores usar essa energia para produzir questões como
"quem é o mais criativo?" (em vez de "quem é capaz de
repetir o que o eu disse?"). Incentivar a cooperação entre os
estudantes é uma forma de estabelecer outro padrão de disputa e
valorizar a integração. Isso é a competição cooperativa.
O
senhor defende que a escola deve preparar os alunos para uma
aprendizagem cada vez mais veloz. Por quê?
A
velocidade na aprendizagem aumentou porque vivemos numa cultura na
qual o conhecimento muda muito mais rapidamente do que em séculos
passados. Se eu vivesse na Idade Média ou na época do Império
Romano, o que tivesse aprendido quando jovem ainda seria verdadeiro
por ocasião da minha morte. Assim, eu usaria durante o resto da vida
o que vi na escola. Atualmente isso não vale mais. A informação
circula com enorme rapidez e é cada vez mais fácil ter acesso a ela,
graças aos computadores e à internet. Por isso, a escola precisa
acompanhar essa velocidade do mundo.
A
internet é, para usar uma expressão sua, um "hiperdocumento vivo em
expansão permanente". Essa avalanche de informações não vai parar
nunca?
Penso
que não. Estamos apenas no início de uma espécie de explosão
cultural, uma explosão que é exponencial e renova o sentido de
liberdade. É preciso ter consciência de que a existência da internet
não significa que tudo possa ser acessado. Ao contrário. O que é
importante é saber que ganhamos opções, porque não precisamos
concordar com tudo nem podemos, individualmente, saber de tudo. O
barato é a oportunidade de fazer conexões com pessoas que
compartilham interesses comuns. Por isso, acredito que essa rede
vai, sim, se tornar infinitamente mais complexa. Exatamente como
acontece com os neurônios do nosso cérebro.
O
que o senhor acha de um filme como Matrix, que parte do pressuposto
de que a realidade é fruto de um programa de
computador?
É um
grande filme. Sobretudo porque fala de questões que nada têm a ver
com a informática. Eu o vejo como uma espécie de história budista.
No filme, os heróis descobrem que a realidade que eles percebem por
meio de seus sentidos é inteiramente fabricada por uma máquina e que
a "realidade real", por assim dizer, está além do que eles conseguem
ver, exatamente o mesmo que os budistas dizem a respeito da
ilusão.
Qual
foi seu primeiro contato com o computador?
Eu
tinha em torno de 17 anos e estava prestando o serviço militar. Era
encarregado de alimentar os computadores do Exército com cartões de
identificação perfurados, para gerar listas. Tratava-se de um
sistema rudimentar que empregava a lógica binária dos computadores,
ainda que não possuísse tela nem teclado.
Por
que o senhor classifica o computador como "máquina
universo"?
Porque
ele materializa um sonho matemático de criar uma máquina capaz de
calcular tudo. Havia na França, no fim da década de 1970, um sistema
chamado Minitel, uma espécie de internet desenvolvida pela companhia
de telecomunicações e mantida pelo Estado com propósitos
estratégicos. Na quela época, eu li pela primeira vez textos e
livros que falavam da possibilidade de integrar os computadores numa
rede e logo compreendi que aquela seria uma grande
revolução.
Os
computadores criaram um paradoxo: as idéias são mais valorizadas e
ao mesmo tempo é mais fácil enviar pela internet textos anônimos e
falsificações...
Essa
questão é essencial. A propriedade intelectual é cada vez mais
importante porque é justamente nela que se sustenta o patrimônio das
pessoas mais ricas do mundo. A riqueza está nas idéias. Por isso,
não acredito que a propriedade intelectual desaparecerá na internet.
Na minha opinião, o que vai ocorrer é que, após um período de
transição, teremos uma necessidade de adaptar as regras de
propriedade intelectual para uma nova situação, mais flexível,
provocada por essa facilidade de divulgar idéias via
internet.
O
que levou o senhor a decidir se mudar da França para o
Canadá?
Porque
eu queria lecionar uma disciplina que se chamasse Inteligência
Coletiva e, na França, não consegui. No Canadá me disseram: "Você
quer criar uma disciplina? Vá em frente". Assim pude desenvolver, na
Universidade de Ottawa, um projeto de dez anos de duração que tem
por objetivo estudar e acompanhar a formação da inteligência
coletiva.
Durante acontecimentos recentes, como a guerrano Iraque,
vimos pela primeira vez a ocorrência de manifestações simultâneas e
vinculadas em várias partes do mundo. Isso é uma "conexão
planetária"?
Sim,
sem dúvida nenhuma. A simultaneidade dessas manifestações sinalizou
o nascimento de um espaço público global, ou seja, a formação de um
canal de expressão para uso de uma opinião pública mundial.
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